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Branko Milanović e as consequências da solidão do capitalismo

Capitalism, alone, escrito por um economista, não é exatamente um livro de economia. Branko Milanović soube fazer nessa obra, a partir de seu campo de especialidade, uma ampla reflexão sobre a política e a sociedade contemporâneas. Estudioso dos fenômenos de desigualdade, salta à vista sua habilidade para descrever e explicar, por trás desses fenômenos, as estruturas de poder, as hierarquias e as dinâmicas de sua perpetuação. De sua escrita serena, mas instruída por um bisturi analítico afiado, emergem as linhas de força discretas, pouco visíveis, de reprodução do sistema — enfim, as sutilezas da dominação social em nosso tempo.

“Escrita serena” e “sutileza da dominação” formam um par na costura do texto, o que pode dar a impressão de um elogio sotto voce ao próprio capitalismo. Nada mais enganoso. Milanović nasceu na antiga Iugoslávia, ainda nos tempos de Tito, e sabe muito bem o que está dizendo quando compara o capitalismo com as alternativas que com ele competiram ao longo do século XX. É claro que não está se referindo às alternativas que o imaginário social sempre traz ao campo da ação e da representação política, através de lutas sociais, movimentos e partidos. A questão é, antes, factual: o capitalismo “realmente existente” contra as alternativas “realmente existentes”, para usar uma velha terminologia. Aliás, o título do livro é ambíguo o bastante para não só marcar o fato, mas também abrir a interrogação sobre suas consequências. Depois de uma longa e turbulenta corrida, o capitalismo chegou ao século XXI como “líder isolado”: como isso foi possível? Mas também chegou até aqui como que entregue a si mesmo, “sozinho”, trazendo consigo todos os seus anjos e demônios: e agora?

Trata-se, portanto, de um retrato. Porém, um daqueles retratos que sugerem movimento. Isso porque sua própria explicação do predomínio do capitalismo parte da ideia de que esse sistema social se revelou maleável o suficiente para oferecer variações de si mesmo. Variações no tempo e no espaço. Na quadra atual, ele identifica duas modalidades principais: o “capitalismo liberal-meritocrático” e o “capitalismo político”, cada qual com uma experiência exemplar. Para o primeiro caso, os Estados Unidos a partir da presidência de Ronald Reagan (1980); para o segundo, a China das reformas capitalistas iniciadas por Deng Xiaoping (1978). Note-se que ambas as experiências foram inauguradas mais ou menos na mesma época, e não por acaso: elas representam os atores fundamentais, ainda que desempenhando papeis contraditórios, da globalização neoliberal. Embora o autor prefira usar o termo “globalização neoliberal” para se referir ao processo “ditado pelo Ocidente e centrado ao redor do capitalismo liberal-meritocrático”, ele mesmo registra que ambas as variações constituem hoje um sistema bastante integrado. Fica a pergunta: essa integração não seria ela mesma informada por uma articulação mais ampla e deliberada, que visa coordenar o conjunto? Milanović não desenvolve esse ponto mas, em compensação, salienta um fenômeno que dá a ideia do altíssimo nível de interdependência a que chegou o capitalismo em nossos dias. É que as duas variantes exploram, embora de maneiras peculiares, as chamadas “cadeias globais de valor”, pelas quais a produção de uma mesma mercadoria é fatiada em diferentes sítios do espaço global, aproveitando as condições de custo mais favoráveis (do ponto de vista do capitalista) para cada dólar investido. Ora, esse fenômeno tornou-se possível não só por conta do barateamento do transporte e da comunicação, mas graças ao poder transferido a arranjos institucionais que tornaram mais firmes, no plano internacional, os direitos de propriedade, exponenciando os incentivos à mobilidade do capital e a importância dos agentes públicos e privados que manejam os fluxos financeiros no planeta. (O autor também extrai dessa análise consequências para as chances de inserção econômica dos assim chamados “países em desenvolvimento”, como o Brasil, mas não vou discuti-las aqui.)

Integradas como estejam no campo econômico, essas duas modalidades também competem entre si, não só por conta da competição mercantil, mas porque gravitam em torno de potências estatais que disputam poder e influência na arena global. Com isso, acabam se oferecendo como “modelos” que convidam a comparações de desempenho. O autor seleciona alguns parâmetros de comparação, nos quais insere as trajetórias peculiares de cada modalidade. Assim, o capitalismo político é o resultado da história sinuosa dos regimes comunistas implantados no leste e sudeste asiático depois da Segunda Guerra Mundial. O que encontramos nessa trajetória é um misto de ruptura e continuidade. Ruptura com o regime econômico socialista; e continuidade do regime político ou, mais amplamente, da forma de Estado, em virtude da preservação do monopólio do partido, mas sem prejuízo do estímulo ao erguimento de uma classe de capitalistas sob sua supervisão. Em suma, um regime autoritário dotado de uma elite de managers que, cooptada pela liderança política, exerce poder coercitivo extralegal sobre o conjunto das classes sociais, embora deixando suficiente margem de autonomia para a burguesia ascendente.

O ponto mais interessante na análise é que o autor enxerga no ziguezague dessa história uma linha invisível que acabou fazendo da revolução social — esta dirigida pelos mesmos partidos comunistas que depois sobreviveram aos desenganos de seus enredos imaginários — uma espécie de acumulação primitiva do capitalismo. Isto é, um substituto funcional, mas operando de cima para baixo, dos atores sociais que, de baixo para cima, levaram séculos para forjar condições semelhantes no Ocidente. Eis a ironia: é como se, dessa perspectiva, o capitalismo tivesse se tornado o “estágio superior” do socialismo, e não o contrário. E talvez mais irônico ainda: que esse tenha sido o resultado não-intencionado da estratégia soviética, inspirada por uma visão de Lenin ainda durante a guerra civil, de centrar a luta revolucionária à leste, na periferia do sistema capitalista dominante, e não a oeste, em seu centro, através do apoio à insurgência dos povos dominados pelo imperialismo europeu. O sucesso da estratégia, porém, cobrou seu preço letal, uma vez que o Estado que a protagonizou, o “farol” da luta anti-imperialista, acabou não logrando fazer a passagem que os seguidores mais pragmáticos conseguiram.

O que dizer das peculiaridades históricas da contraparte “liberal-meritocrática”? Aqui também se observa um misto de ruptura e continuidade. Ruptura com o regime econômico predominante no pós-guerra, o “capitalismo social-democrata”, representado, com modulações distintas, pelo New Deal, já sem Roosevelt, nos Estados Unidos, e pelo welfare state na Europa ocidental; e continuidade institucional do regime democrático. O advento do capitalismo liberal-meritocrático, tendo os Estados Unidos como modelo, e que os países europeus, principalmente após a conformação da União Europeia, procuraram imitar a seu modo, significou a quebra do princípio de solidariedade que ancorava socialmente a democracia desses países. Contudo, sem quebrar ao mesmo tempo seus lastros institucionais: as eleições periódicas, a divisão e equilíbrio dos poderes e as próprias liberdades democráticas. De que princípio de solidariedade se está falando? Milanović o define explicando o sistema de seguridade social, cuja plena operação ocorreu, de fato, apenas na Europa ocidental. E assim se deu porque só lá as leis de seguridade social obrigavam o conjunto dos cidadãos, num esquema de contribuição contínua e progressiva (de acordo com o nível de renda), a sustentar um fundo público que servia como um seguro universal contra a doença, a velhice e as intempéries da economia capitalista. Uma solidariedade interclassista e intergeracional, cujas argamassas políticas eram o dinamismo do mundo do trabalho, organizado por sindicatos fortemente unificados, sobre os quais erguiam-se os partidos socialistas com ampla capilaridade eleitoral.

Circunstância antecedente que muito contribuiu para o sucesso do welfare state foi a homogeneidade social que os Estados nacionais europeus promoveram ao longo de séculos, para o qual pesou também o fato de terem sido durante um bom tempo fornecedores, e não receptores, de população migrante. O contrário aconteceu nos Estados Unidos, em que grande parte da massa trabalhadora foi se constituindo de povos imigrantes — a começar a parcela africana antes escravizada —, uma população heterogênea e, além disso, segregada, o que trouxe, conforme o estudo clássico de Seymour Lipset, dificuldades enormes para a construção de sindicatos unitários e, consequentemente, de partidos socialistas poderosos como os europeus. Daí as falhas e fragilidades de seu respectivo esquema de seguridade social, a despeito de todos os avanços regulatórios do New Deal.

Esse contraponto merece destaque porque revela com mais clareza em que medida a globalização neoliberal teve um efeito deletério sobre os incentivos à solidariedade social, em particular a solidariedade interclassista, e sobre a estabilidade do regime político. A começar, por conta de um fator externo: o ingresso dos antigos países comunistas no mundo capitalista, principalmente os asiáticos, foi gerando vasos comunicantes entre os mercados de trabalho antes separados por sistemas sociais opostos. Agora a massa trabalhadora se via involuntariamente integrada, ainda que à distância, mas integrada a partir do baixíssimo patamar de renda dos recém-ingressantes. A contrapartida interna desse fator foi, evidentemente, a desagregação do movimento organizado dos trabalhadores ocidentais — seus sindicatos e partidos — e o aumento do poder de chantagem das classes detentoras de capital, num movimento de escape dos compromissos de respeito aos direitos sociais e sustento do fundo público. Com isso, as classes médias, ao temer que o peso principal desse compromisso recaísse sobre si, foram elas mesmas encontrando modos de evasão, através do apoio a plataformas eleitorais que substituíam a seguridade social universal por esquemas segmentados, voltados para os mais pobres, e de seguro privado para os demais. Finalmente, vendo-se abandonadas à própria sorte, as classes trabalhadoras passam a dar ouvidos aos discursos xenófobos que, em vez de mirar o funcionamento perverso do sistema, de resto abstrato (embora real), apontavam o dedo acusador para a população imigrante que, mesmo quando pouco significativa em termos numéricos, simbolizava o peso corrosivo do imenso “exército industrial de reserva” da globalização.

Conhecendo muito bem a crítica da assim chamada “meritocracia” elaborada por John Rawls, autor que cita com frequência ao longo da obra, Milanović se vê em condições de apontar a sutileza da dominação social que daí emerge. Eis que a seguridade universal, calcada na repartição igualitária dos custos e benefícios de um mesmo esquema de cooperação social, é substituída pelo princípio que atribui a cada indivíduo a responsabilidade exclusiva pelo sucesso ou fracasso do percurso de sua vida, fazendo-o “merecedor” do quinhão obtido, para o bem ou para o mal. Em outras palavras, como se o elemento propriamente cooperativo, logo a interdependência que faz de cada um de nós, queiramos ou não, sócios de uma mesma empreitada, não existisse ou fosse irrelevante. Ideia tão próxima de um senso comum desavisado, embora tão sujeita a enganos, por fixar o olhar na árvore e não na floresta, e que tem por efeito legitimar as tendências do capitalismo mais propícias a gerar desigualdades ilimitadas.

Aqui chegamos ao ponto em que a comparação entre as duas modalidades, feita com maestria pelo autor, rende percepções iluminadoras. Ambas são propensas a níveis crescentes de desigualdade, os quais enviesam o poder político para os grupos que já se beneficiam do funcionamento normal do sistema econômico. Tipicamente, isso se faz com níveis também crescentes de corrupção dos aparatos de governo, mas suas consequências deletérias para a legitimidade dos respectivos regimes políticos não são idênticas. Ocorre que os países de capitalismo político, a despeito da desigualdade que se acentua, têm apresentado — em parte porque iniciaram sua empreitada capitalismo adentro num patamar muito baixo de riqueza média — taxas de crescimento econômico elevadas e consistentes. Esse resultado, mais do que qualquer outro, amortece o impacto da desigualdade, que até pode ser vendida como um preço a ser pago pela melhora relativa do bem-estar geral, mas também o da corrupção.

Como este último fator é igualmente significativo nos países da outra modalidade capitalista, a diferença entre os regimes políticos, autoritário num caso e democrático no outro, pode parecer irrelevante. De fato, porém, seu impacto é muito mais corrosivo na política que vige no capitalismo liberal-meritocrático, pelos seguintes motivos. Primeiro, porque este apresenta, também de modo consistente, taxas médias de crescimento muito mais baixas. Em princípio, essa tendência é muito mais suportável em regimes democráticos, porque seu princípio de legitimação não depende exclusivamente do crescimento econômico contínuo. Bem ao contrário do que acontece nos regimes autoritários do capitalismo político, que têm como único veículo de garantia de sua aceitação a promessa de riqueza crescente e ininterrupta, para a qual investe todos os seus esforços. A verdade, contudo, é que a corrosão dos regimes democráticos se faz mais devastadora pelo fato de o baixo crescimento vir acompanhado de um círculo vicioso, no qual as classes mais abastadas neutralizam, com emprego maciço de dinheiro, os efeitos do voto popular sobre as decisões governamentais — por exemplo, através do financiamento privado das campanhas eleitorais. Induzindo o poder estatal a beneficiar os já beneficiados, o capitalismo liberal-meritocrático vai se tornando um sistema de privilégios que transforma a burguesia numa espécie de casta fechada, uma plutocracia em sentido estrito, perpetuada pela herança e pela “homogamia”, os casamentos endógenos.

No caso do capitalismo político, o que se perpetua é a oligarquia que controla o aparato estatal, enquanto o crescimento econômico acelerado induz uma dinâmica social na qual a burguesia ainda é suscetível a mutações internas contínuas. Prevalece então uma certa autonomia da burocracia estatal que, em nome de preservar o crescimento econômico a todo custo, emprega o poder autoritário para manter sob controle as classes em ascensão. É isso que, finalmente, faz Milanović cogitar a possibilidade melancólica de o capitalismo liberal-democrático, assediado pelo declínio econômico e pela insatisfação popular com o desempenho da democracia, vir a autotransformar-se em algo semelhante ao capitalismo político, desfazendo-se de vez de sua forma política característica.

Quiçá essa projeção nada alvissareira pouco considere o potencial de resistência e transformação positiva que vem das lutas sociais e da consciência democrática que permanece forte em nossas sociedades, a despeito de toda desarticulação promovida nos anos neoliberais. De qualquer forma, não deixa de servir como uma advertência.